Nos últimos meses uma série de eventos evidenciam uma mudança em nossos hábitos exigindo de toda a sociedade uma readaptação no modo de vida, como: uso de máscaras, higienização das mãos com maior frequência, isolamento social, maior tempo dentro de casa com a família, mudança no trabalho e consequentemente maior tempo conectados às redes sociais. Diante desse cenário muitos acreditam que antigos padrões serão alterados. Seria este o Novo Normal? Refletindo nisso e buscando respostas para o que as pessoas que vivem com HIV/AIDS (PVHA) podem esperar durante e pós pandemia, o MNCP estará publicando uma série de entrevistas com professores, gestores e PVHA para abordar as ações realizadas e promover o debate público de maneira fundamentada, propiciando reflexões em vista a superar os desafios impostos neste período, assim como, pós pandemia.
Para iniciar essa série, Vania Mello, professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), analisa o conceito de novo normal do qual todos estão falando. Confira:
MNCP: Como podemos definir um conceito de normalidade?
Entendo que não exista “um” conceito de normalidade. Existem diferentes concepções a respeito do que se considera normal e todas elas coexistem ao mesmo tempo em uma disputa de sentidos. Particularmente, gosto de pensar essa questão a partir das problematizações apresentadas por autores como Georges Canguilhem e Michel Foucault, ao demonstrarem o quanto o conceito de normal é encharcado de valores morais.
Para Canguilhem (2006), o normal não deve ser tomado como “média estatística”, generalizada por uma ciência; mas como “normatividade”, idéia ancorada na experiência singular de um sujeito que institui para si novas normas para fazer frente às adversidades do viver. A noção de norma para Foucault corresponde ao nascimento da medicina social como “aparelho de medicalização coletiva” que permite a construção de discursos e práticas em torno daquilo que é valorado como mais ou menos normal, a depender de cada sociedade.
Assim, penso que qualquer idéia a respeito do que entendemos por “normal” passa pelo exercício de colocar em destaque, tanto a experiência singular e subjetiva que permite a cada um definir o que é normal para si, quanto a eficácia das normas sociais que, ao produzirem determinadas relações de poder, nos assujeitam a padrões pré estabelecidos ou nos instigam a transformá-los. De mais a mais, é limitado pensar “um” normal, quando o que é normal para uma pessoa não necessariamente o é para outra e vice-versa.
MNCP: Observando o cenário social, o que viria ser esse “novo normal”?
Temos vivido uma situação que nos foi imposta do dia para a noite. Alguns de nossos planos tiveram que ser revistos e muitos outros postergados num cenário de muitas incertezas. Por outro lado, o contexto da epidemia do coronavírus tem escancarado algo que sempre soubemos: que não temos controle absoluto sobre nada. Ainda assim, é importante considerar que, apesar do medo, é esperado e, até mesmo saudável, sentir-se mal com a perda de planos de vida.
A discussão relativa ao “novo normal” tão presente nestes últimos tempos, parece atender ao anseio de profetizar o futuro, para o qual não temos respostas claras e tranquilizadoras. Qualquer que seja isto que temos nomeado como “novo normal”, torço para que seja diferente da barbárie, do desrespeito e da violência que parece ter solapado nossa existência. Que o tempo presente, favoreça a ressignificação do valor da vida, da ética e da solidariedade de modo que o que ainda está por vir (novo normal?!) o seja em defesa da vida.
Vania Roseli Correa de Mello – Psicóloga-sanitarista. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (2016). Atualmente é Professora Adjunta, área de Saúde Coletiva, na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul.
Referências:
CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
RAMMINGER, Tatiana. (2008). Entre a normatividade e a normalidade: contribuições de G. Canguilhem e M. Foucault para as práticas de saúde. Mnemosine, 4(2), 68-97.
REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.