“(…) Ninguém me rouba a individualidade interior. 
A gente é o que é, mesmo que os outros não queiram. 
Isto me deixa extremamente feliz, porque viver é ser de alguma forma, e eu sou.” 
(trecho do livro: É fogo; 2020 de Maria Helena Vargas da Silveira – nascida em Pelotas – RS)
 

Nós, as mulheres do MNCP – Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas vivemos com HIV/Aids. E nessas duas décadas de existência interpelamos a cada dia a morte. E o canto uníssono de 350 mil mulheres é entoado em todo o país. E a nossa canção é: Temos direito a vida!

Protagonizamos nossa história desde 2004. Ao mesmo tempo que atuamos no presente, somos a memória viva de uma história de 40 anos de epidemia, a qual traz consigo ainda nos dias atuais a morte social, a física, a política e a estrutural, as quais danificam não só nosso organismo, mas o nosso direito de existir enquanto cidadãs.

Somos as Mulheres do laço vermelho[1] no peito, e nossas marcas no corpo e na alma contam a história do passado, do presente e reforçam a nossa necessidade de continuarmos resistindo para que o futuro nas nossas vidas seja possível.

Desde o início, o MNCP, atua com todas as regiões do país, e não tem como ser diferente, porque as vulnerabilidades de cada região são especificas e demandam também respostas diferenciadas.

Nesta perspectiva, o MNCP fortaleceu suas bases nos lugares mais ermos deste país. De norte a sul, de leste a oeste do Brasil, uma cidadã está na articulação com os governos locais, estaduais e federal, bem como, com as fundações e ONGs, cooperando nas instancias dos conselhos, comissões, e quaisquer outras instancias onde for necessário contribuir definindo assim, as políticas adequadas para os nossos corpos físico e social no contexto da epidemia.

Cada passo dado em si já é uma conquista, porque muitas mulheres nem sabiam que tinham voz, e agora seguem acessando os seus direitos e das demais. A História ativista de 20 anos do MNCP é inspiradora, porque cria e recria possibilidades. É sem dúvida, uma narrativa escrita com vida.

Nossas pautas são complexas, e exigem de nós qualificação, porque saúde não é só acesso aos medicamentos e aos tratamentos, mas também moradia, trabalho, lazer, educação etc. A partir dessa demanda hoje formamos um quadro de lideranças capacitadas em advocacy, elaboração de projetos, produção de material de comunicação, e participações efetivas e qualificadas nos conselhos e instancias de decisão.

Nasci em tempos rudes. Aceitei contradições, lutas e pedras como lições de vida e delas me sirvo. Aprendi a viver (trecho do poema: Assim eu vejo a vida, Cora Coralina)

O MNCP, ao longo desses anos ainda mantem um ativismo vibrante e comprometido, e definimos que o HIV, a AIDS, o gênero, a raça, a religião, a cor, a etnia, e a condição financeira, não nos define. Temos nome, RG e rostos. Somos mulheres trabalhadoras, mães, avós, casadas, solteiras, hetero, lésbicas, bisexuais, trans, enfim…Somos o que quisermos ser!

E para alinharmos essa postura, o MNCP se reúne periodicamente com as suas lideranças e bases, com o objetivo de traçar estratégias para o enfrentamento das injustiças, denunciar as frágeis políticas de governo voltadas para as mulheres com HIV/AIDS, bem como, participar da construção de novas políticas.

A nossa força reside em confrontarmos o que nos vulnerabiliza, tais como: a pobreza, o abandono, filhos também com HIV/aids, viuvez decorrentes da aids, envelhecimento, estigmas, preconceitos, descaso da saúde com a nossas queixas sobre nossos corpos, etc, e transformar todo estes contextos em acesso a direitos humanos.

 

 “Como todas as poetas as negras também surtam, mas o primeiro ato é sempre uma pergunta
– Onde estão as negras, onde estão, onde estão as negras”
Trecho do poema: nunc obdurat et tunc curat … poema do meu livro “um buraco com meu nome”, para Beatriz Nascimento, de Jarid Arraes, nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta.

Sabemos que o contexto social, étnico, racial, etc., os quais vivem as mulheres desse imenso Brasil marcam suas identidades, na maioria das vezes para excluir, como é o caso das indígenas, negras, quilombolas, periféricas e mulheres acima de 60 anos, daí a importância de expressarmos de diferentes formas, seja na poesia, arte, literatura, isto é, produzir conteúdos que possam comunicar e transformar. É este o alvo do MNCP: resistir, transformar e preservar a vida das mulheres com HIV/aids em todos os seus aspectos.

 “Sou filha da selva, minha fala é Tupi.
Trago em meu peito, as dores e as alegrias do povo Kambeba e na alma, a força de reafirmar a nossa identidade que há tempo ficou esquecida”
(trecho extraído do poema Ser Indígena – Ser Omágua, de Márcia Wayna Kambeba, da etnia Omágua Kambeba, do Amazonas).

Algumas mulheres do laço vermelho, as quais sucumbiram a todas as intempéries do viver com HIV/Aids deixam aqui nesta narrativa de 20 anos de luta, a sua contribuição. Essas mortes não serão esquecidas. A nossa dor é transformada em força e coragem para seguirmos lutando.

Hilda Maria, diagnosticada com HIV/Aids, morre em 1996 de fome extrema. Presente!

Julia do Nascimento, diagnostica com HIV/Aids, morre em 1994 em decorrência de incêndio proposital em sua humilde casa. Acreditava-se naquele lugar, que ela poderia transmitir o vírus HIV pelo ar. Presente!

Ana Ribeiro, diagnostica com HIV/Aids morre em 1988 em decorrência de falta de medicamentos para o HIV/Aids Presente!

Luisa Marcondes, diagnosticada com HIV/Aids morre em 2012 em decorrência de negligencia durante o parto, pois nenhum profissional queria atende-la porque tinha Aids. Presente!

Edna Campos, diagnostica com HIV/Aids morre em 2020 em decorrência dos efeitos do HIV/Aids e dos medicamentos (infarto) Presente!

Todas essas e mais 4 mil morrem por ano. Nós morremos e vivemos juntas com elas!

Silencio = Morte[1], traduz a urgência do grito das mulheres vivendo com HIV/Aids pela vida. A invisibilidade mata. Basta!

Por isso é preciso que a voz do MNCP ecoe por toda parte. Basta de mortes evitáveis, basta de preconceito e estigma, basta de intolerância, basta de desigualdades.

Almejamos com a nossa atuação uma sociedade igualitária, na qual a justiça social traga   a liberdade, o pão, a paz, a educação, a moradia e a vida para cada cidadã positiva. E estamos dispostas a continuar entoando essa melodia por todos os cantos, fazendo a diferença, pautando nossos direitos, contribuindo para a cura do HIV e da AIDS, assim como, para a cura dos povos. Afinal, somos as mulheres do laço vermelho.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos te juntares
 (trecho do poema de: Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão. Hilda Hilst)

Nair Brito

Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas

[1]  Campanha criada utilizada pelo grupo ativista Act UP. O laço vermelho foi criado em 1991 por grupo de profissionais de arte nova-iorquinos para homenagear amigos e parentes mortos pela Aids.