A deficiência ainda é entendida por seu modelo biomédico, que a resume a uma tragédia individual, desconexa de estruturas sociais desiguais. O entendimento da deficiência pela perspectiva de direitos humanos é vigente em nossa legislação, no entanto o capacitismo estrutural, que se manifesta nos diferentes espaços através da subjugação e exclusão dos nossos corpos, impede que a compreendamos como resultado de uma sociedade pouco sensível à diversidade humana.
É importante frisar que a deficiência está associada a altas taxas de analfabetismo, alimentação inadequada, falta de acesso à água potável, grau de imunidade baixo, doenças (e tratamentos inadequados), condições de trabalho perigosas/insalubres e violências, incluindo a violência de gênero. Ou seja, a deficiência está sendo um importante marcador social da privação de direitos fundamentais.
De acordo com o Censo Demográfico 2010, 45.606.048 brasileiros, 23,9% da população total, têm algum tipo de deficiência. As mulheres com deficiência representam 26,5% do número total de brasileiras. Diante a realidade da violência no Brasil, onde uma mulher é assassinada a cada duas horas e 164 estupros são notificados por dia, precisamos reconhecer que a probabilidade dessas violências acontecerem com mulheres com deficiência é alta, já que a cada 4 mulheres, ao menos 1 tem deficiência.
Segundo relatório do Banco Mundial/Faculdade de Yale sobre HIV/ AIDS e Deficiência (2006), estima-se que mulheres com deficiência correm 3 vezes mais risco de serem estupradas do que mulheres sem deficiência. Esse dado é ainda mais preocupante entre as jovens com deficiência intelectual, onde se estima que 70% delas serão violentadas.
A vitimização de pessoas que, além de sofrer a violência de gênero, ainda sofrem vulnerabilidades por deficiência foi abordada também pelo Atlas da Violência 2018. A pesquisa constatou que cerca de 10% das vítimas de estupro possuíam alguma deficiência e, além disso, 12,2% do total de casos de estupros coletivos foram contra vítimas com alguma deficiência. Outro dado preocupante foi a baixa cobertura dos procedimentos realizados no socorro às mulheres com deficiência estupradas, que não alcançaram nem metade dos casos na profilaxia de IST (39,6%), HIV (27,6%); coleta de sangue (45%), coleta de sêmem (6,8%); coleta de secreção vaginal (15,5%); contracepção de emergência (26%); e aborto previsto em lei (1,5%). Esses dados são alarmantes, tanto por não darem conta, levando em consideração as barreiras impostas, da dimensão do número real de mulheres com deficiência submetidas a essas violências, como também por escancarar que, mesmo quando acessam os serviços de saúde, elas não recebem o tratamento adequado.
Precisamos reconhecer que a negação da integralidade da mulher com deficiência resulta em atendimentos precários, que invisibilizam nossos corpos e os colocam em um lugar secreto, sem acesso a informações sobre o exercício seguro de nossa sexualidade e direitos reprodutivos. Casos como esterilização compulsória, falta de encaminhamento a exames ginecológicos e indicação de aborto para mulheres com deficiência que desejam ser mães e não corem risco clínico de vida, são exemplos que nos sentenciam a vulnerabilidade e a subordinação do entendimento sobre o nosso corpo ao outro. Negar o desejo e o direito a uma vida sexual implica em negar a natureza humana dessa pessoa e, consequentemente, todos os seus demais direitos. No sentido mais amplo e contemporâneo, saúde sexual e reprodutiva é, sobretudo, uma questão de cidadania e não um estado biológico, independente do social.
Como já citado, a dificuldade em reconhecer a mulher com deficiência pelo viés de gênero a coloca em um lugar de vulnerabilidade, inclusive, para adquirir o HIV. Em contrapartida, muitas mulheres vivendo com HIV e/ou AIDS podem adquirir deficiência devido à falta de acesso ao tratamento adequado, o impacto do vírus no sistema nervoso central, a doenças oportunistas e ao próprio uso de antirretrovirais. Esses dados demonstram a necessidade de aprofundar a correlação entre HIV e deficiência e reforçam que a luta contra a AIDS é um tema que intersecciona gênero, sexualidade e deficiência.
O Brasil, ao ser signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e incorporá-la em sua Constituição, reconhece que mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas a violências e outras discriminações e se compromete a adotar medidas que assegurem nossa proteção. Mesmo assim, seguimos invisibilizadas por um capacitismo perpetuado em todos os espaços, incluindo do poder público. Nós, mulheres com deficiência, somos muitas. Somos mulheres vivendo com HIV, pretas, indígenas, LBTs, trabalhadoras, entre tantas outras identidades. Precisamos compreender que a deficiência, assim como gênero, raça/etnia, classe e sexualidade, nos submete a discriminações que acentuam violações de direitos. Desconsiderar a importância de interseccionalizar esses temas é desconsiderar o impacto dos marcadores sociais e, mais do que isso, nos negar a condição de humanas. Nesses 16 dias de ativismo, reforçamos a necessidade de políticas de enfrentamento a violências que também reconheçam nossos corpos!
Vitória Bernardes
Psicóloga, Conselheira Nacional de Saúde (CNS) e Conselheira Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência (COEPEDE/RS). Integra as Comissões Intersetoriais de Atenção à Saúde das Pessoas com Deficiência e de Saúde da Mulher do CNS e as Comissões de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP/RS) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP). É integrante do Coletivo Feminista Helen Keller e da União Brasileira de Mulheres.