Esta homenagem, escrita pelo amigo e sempre parceiro, o psicólogo Jean Dantas, é um presente cheio de afeto, sensibilidade e poesia que descreve o universo feminino dentro da realidade da epidemia de AIDS. Trata-se de uma composição comovente que nos leva à reflexão sobre a força, a suavidade e o amor pela vida, demonstrados por três mulheres que facilmente representam as milhares de mulheres que vivem com HIV/AIDS mundo afora.

O pássaro canta ao Pé da Laranjeira, a Mulher e um vírus chamado HIV.

O dia amanheceu e, no extremo da cidade um pássaro canta no Pé da Laranjeira, insistindo em chamar atenção para seu nobre canto.  Ao lado da Laranjeira frondosa, num quarto verde desgastado pelo tempo, Amarílis dança e também canta seu canto de alegria de jovem. Ao pé da entrada do quarto, seu médico arregala os olhos e pensamentos refletindo e perguntando para si mesmo, de onde vem esta força que faz Amarílis dançar em cima de um corpo tomado e adoecido pelo vírus HIV. E a alegria da nossa flor contagia toda enfermaria…  

Na outra ponta da cidade, naquela mesma manhã, Gardênia prepara o café da manhã para sua família, pois mãe é a primeira a acordar e a última a dormir. De café tomado, as crianças vão para escola e, ela segue seu compromisso de acompanhar o marido ao médico, pois ele estava sofrendo de dores no olho esquerdo. Ao adentrar o hospital, passou por aquele corredor que apontava a presença de doentes de uma doença que lhe causava medo, mas não se intimidou porque estava afobada para saber dos resultados dos exames do marido. O médico, atendeu Gardênia e seu marido, numa atmosfera verde degastado, que combinada com a pintura do ambulatório. Na palavra miúda e direta, o médico falou de todos os resultados negativos, mas um somente dera positivo e, justamente era aquele que causava aquela doença dos doentes que ela acabava ver…

No entardecer ensolarado, daquele mesmo dia, no centro da cidade, Violeta dava à luz ao seu lindo menino, gordinho e com as bochechas salientes e cheias de saúde. A mãe, vive um misto de alegria e apreensão, pois o medo da transmissão vertical do HIV se fez presente em toda gestação, mas naquele momento, ele toma uma nova dimensão, porque toda sua história e medos passava pelo seu coração. A criança deu um novo significado para a vida de Violeta, pois depois do falecimento de seu pai, também em decorrência da AIDS, ela se esquivava da sua existência, num viver sem viver, à vitalidade da força de sua adolescência.

“A mulher tem na face dois brilhantes,
Condutores fiéis do seu destino,
Quem não ama o sorriso feminino,
Desconhece a poesia de Cervantes”1.                     

Acredito que Cervantes, nosso poeta madrilenho, se tivesse a oportunidade de conhecer Amarílis, Gardênia e Violeta refletiria em versos e muita prosa na penumbra dos seus pensamentos:

— De onde vem a força que faz Amarílis resistir a morte do seu corpo entregue aos seus 30 quilos?

— De onde vem a força que faz Violeta, silenciar em si, diante da sua dor, raiva e medo para cuidar do marido e da família?

— De onde vem a força que faz Violeta, redirecionar a sua vida, tão incerta, diante do fruto do vosso ventre?   

Caro Cervantes, lhe escrevo em baixo e finito silêncio, ao som de Bach, que essas mulheres me fizeram perceber que existe algo a mais no universo feminino, que foge ao entendimento do nosso mundo masculino. Sem entrar em méritos existenciais acerca da discussão de gêneros e a da sua representação em nossa sociedade, penso que temos na mulher, um arsenal de liberdade que traduz a força que move o universo. 

A mulher que carrega no seu corpo e alma, tantas belezas e marcas não tão belas como o HIV, sempre me causaram admiração e pensamentos sobre a origem desta força.

Para muitos(as) a força da mulher vem de Deus; outros(a), acham que vem da alma feminina; outros(a), da criação repressora, sexista, machista ao qual são sujeitas e; outro(as), reafirmam que a força vem daquela essência feminina, presente na mulher, que tanto inconscientemente, ameaça o poder do falo.

Um dia,  Gilberto Dimenstein escreveu na sua coluna, no Jornal Folha de São Paulo, um texto que fazia menção ao que estamos conversando agora, enfatizando as diferenças entre homem e mulher e, num dado momento, ele coloca: a mulher tem algo maravilhoso que é a dimensão da vida e, nós pobres homens, temos somente a dimensão da morte. Por isso, ele justificava a quase inexistência de mulheres acusadas de assassinato, por exemplo, em comparação com os homens.

Então, se Dimenstein estivesse certo, está na força ancestral da manutenção da vida, que faz com que nossas mulheres, que lidam com tantas coisas na sua existência, conseguem resistir a tudo e a todos, pois tem algo maior em sua essência, do que um vírus. 

A vida é mais plena, afetuosa e resistente, porque és uma concepção do feminino tão vibrante em nossas mães, esposas, irmãs, avós, amigas, primas, namoradas, amantes e todas as mais variadas representações da mulher.

Eu me tornei um homem melhor, porque tive a honra de conhecer e viver ao lado de mulheres como Amarílis, Gardênia e Violeta, que me apresentaram uma vida mais justa, digna e com outras dimensões e cores, que meu olhar obtuso masculino não me deixava perceber.

Oxalá, que dera todo homem ter uma mulher para conversar sobre suas vitórias, mas também para confessar seus medos, fraquezas e dúvidas. Que bom seria, a nossa vida com à harmonia da presença do feminino, masculino e de outras dimensões de gênero, pois o mundo seria melhor para mim e você. 

Parafraseando algumas religiões orientais: o feminino que vive em mim, abençoa o feminino que vive em você.

Obs: foram usados nomes fictícios para preservar a identidade das mulheres citadas no texto.

 

1 – Música: “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa Faz o Homem Gemer sem Sentir Dor”, composta por Zé Ramalho, gravada pela cantora Amelinha

Jean Carlos de Oliveira Dantas

Psicólogo/Mestre em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo.