Apesar de ter perdido um pouco do sentido original, adquirindo um caráter festivo e comercial, o Dia Internacional da Mulher foi criado a partir de protestos de mulheres dos Estados Unidos, da Europa e da Rússia, que reivindicavam, no início do século 20, condições de vida mais adequadas, melhores empregos e direito ao voto.

Ainda hoje, muitas mulheres lutam por causas sociais, em defesa da democracia, da igualdade de gênero e contra o racismo. As que vivem com HIV/aids, por exemplo, lutam contra o estigma e a discriminação, o racismo e a favor da saúde sexual e reprodutiva.

Dados do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) mostram que cerca de 870 mil mulheres se infectam com o HIV todos os anos no mundo e só metade delas tem acesso ao tratamento antirretroviral. Isso coloca a aids como a maior causa de mortes entre mulheres em idade reprodutiva (de 15 a 49 anos) em todo o mundo.

O Brasil registrou, de 1980 até junho de 2017, 306.444 (34,7%) casos de aids em mulheres. Hoje, a aids cresce entre aquelas que têm 15 e 19 anos de idade, mas apresenta queda entre 20 e 59 anos, para voltar a crescer entre as com mais de 60 anos.

As mulheres negras representam 59,6% dos casos de mulheres com HIV no Brasil, segundo Boletim Epidemiológico de 2016 do Ministério da Saúde.

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher publicamos a seguir seis relatos de mulheres que vivem com HIV/aids e lutam pela vida:

Rafaela/Rafuska Queiroz, psicóloga e secretária de comunicação do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas)

“Nesse Dia da Mulher é preciso lembrar que somos mulheres vivendo com HIV/aids todos os dias. E refletir todo caminho percorrido em busca da sobrevivência e resistência. Eu, Rafaela, sempre vivi com HIV, então não tenho como comparar o antes e o depois da infecção, tive que aprender desde nova o que era perda pela aids, mesmo não fazendo ideia do quanto ela seria presente na minha vivência. Apesar de nova sou filha da epidemia, tive que passar e passei pela infância e adolescência, agora estou na juventude, nesta é que realmente tenho experimentado inúmeros fatos do que é realmente ser mulher vivendo com HIV.

Ser mulher vivendo com HIV vai muito além de enfrentarmos uma sociedade e um mundo machista e misógino, temos que lutar também por nossos espaços, por lugar de fala e por participação ativa na busca dos nossos direitos, pelo respeito e por equidade. Queremos e temos que continuar vivas mesmo que os antirretrovirais nos afetem significamente nossos corpos e nossa saúde mental, que nosso emocional não seja abalado por discriminações e exclusões no convívio familiar, amoroso e de trabalho.

Ser mulher vivendo com HIV/Aids é aprender a se amar, se aceitar e  lutar por uma melhor qualidade de vida. É ter direito de amar quem quiser amar, constituir uma família da forma que quiser, de trabalhar quiser. Ser mulher vivendo com HIV/aids é poder ser amada, respeitada e cuidada. É ter políticas públicas que assegurem e realizem nossos direitos de fato e não que fiquem engavetados ou esquecidos.  Ser jovem, negra, mulher vivendo com HIV de transmissão vertical é querer ser enxergada como uma pessoa que tem sonhos, desejos e quer viver de uma forma digna, com respeito com amor e sem efeitos colaterais!”

Jacqueline Rocha Côrtes, tem 58 anos, vive com HIV há 24, é transexual, mãe, integrante do MNCP e da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids

“O primeiro desafio de ser mulher vivendo com HIV/aids é manter-se viva, dada a cronicidade e a toxicidade da doença. Nos esforçamos para viver bem e vivemos da melhor maneira possível, não somos vítimas de nós próprias, lutamos a cada dia. Vivo com aids desde 1994, sou de uma época que não existia o coquetel antirretroviral e não se tinha esperança de vida. Sobrevivi.

Hoje, tenho dois filhos, sou casada, sou uma mulher transexual, fiz a minha cirurgia de redesignação sexual em 2001, e o HIV não me impediu de seguir a vida, na verdade ele me impulsionou.

Muitas dificuldades que nós mulheres com HIV/aids enfrentamos tem a ver com o descaso, o estigma, o preconceito e a discriminação que sofremos diariamente. Lutamos pelo direito de ser mulher, prostituta, mãe, trans, contra a violência, o racismo, a LGBTfobia, a misoginia.

Além disso, temos que ter disciplina e rigor com o tratamento. Não estou falando só de tomar medicamentos, é a adesão a sua própria aids, ao acompanhamento médico, aos exames laboratoriais. Estou falando de infecções oportunistas, da saúde mental que afeta muito a gente, do emocional abalado, do estresse e dos desafios outros que a vida nos traz.

Ter aids, ser mulher e ser pobre é mais difícil do ser ter aids e ser rica; ter aids, ser pobre e ser negra é mais difícil ainda. Ser mulher, ser trans, ter aids e ser negra é um desafio diário, porque cada uma de nós tem as suas especificidades. Viver com aida não é fácil, muitos dizem que tem tratamento e é tranquilo, mas não é. As pessoas podem viver, mas exige disciplina.

Seguir firmes e poderosas demanda um grau de esforço muito grande de uma mulher vivendo com HIV/aids. Muitas informações não circulam. As pessoas ainda não estão familiarizadas com a questão de políticas públicas combinada, a massa não sabe o que é PrEP (profilaxia pré-exposição) ou PEP (profilaxia pós-exposição).”

Micaela Cyrino, artista plástica e integrante do Coletivo Amem e da ICW (Rede Mundial de Mulheres Vivendo com HIV/Aids)

“Eu sempre participei de movimentos sociais, fui uma das fundadoras da Rede de Jovens com HIV/Aids aqui no Brasil, represento o país internacionalmente, faço parte de rede latino-americana, já fui para a Europa e outros lugares. Então, me considero uma exceção, porque aqui não temos estrutura na saúde mental para ser ativista. Sempre sofri preconceito por viver com HIV e ser negra. Mas uma coisa é a “sorofobia”, que tem cada vez menos importância na minha vida. Outra é o racismo que sofro diariamente.

O HIV é a parte clínica, tenho o vírus e tomo remédios todos os dias, isso é inegável, e sei lidar muito bem com a minha saúde e patologia. Só que ser mulher negra nessa sociedade é sofrer racismo e assédio. E essa questão me atingem mais profundamente. Não está estampado no meu rosto que vivo com HIV. Na rua, as pessoas que não me conhecem não sabem da minha sorologia, mas sabem que sou uma mulher negra. Então, o racismo e o machismo estão muito mais presentes de forma agressiva no meu dia a dia.

Quanto ao HIV, acredito que temos de mudar as estratégias de controle da epidemia e ter um olhar especifico para a qualidade de vida de quem já vive com o vírus a muito tempo. Precisamos de estratégias que levam em conta os efeitos colaterais dos medicamentos e as questões sociais. Os jovens que nasceram com HIV têm poucas perspectivas de vida e oportunidades de trabalho.

A tecnologia avançou e hoje uma pessoa com diagnóstico recente tem acesso a um tratamento mais adequado, os efeitos colaterais são menos agressivos. Se fala até em tratamento como prevenção. Falta focar também em qualidade de vida. Não estou falando mal ou sou contra o coquetel, até porque dependo dele. Mas não podemos generalizar a aids. Cada corpo é um corpo e vai reagir diferente ao tratamento.”

Vanessa Campos, representante Estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids do Amazonas e membro do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas

“Quando descobri, aos 19 anos, que eu tinha aids pensei que era o fim do mundo, muitas pessoas morriam e eu pensava que este seria o meu fim também. Então, decidi lutar pela vida. Sempre sonhei em trabalhar, contribuir com a sociedade e construir uma família. Aos poucos fui me fortalecendo e 26 anos depois sou uma mulher de 45 anos e vivo sorrindo.  Descobri forças que desconhecia e fraquezas que eu não queria enxergar. Por anos, não me relacionei sexualmente com ninguém, tinha vergonha de me olhar no espelho, descobri a dor da solidão e o quanto precisava me amar.

Hoje sou mãe, tenho três filhos, me sinto útil e o HIV se tornou apenas um detalhe que aprendi a administrar no meu dia a dia.  Sou uma mulher moldada pelas agruras da aids e pelo amor e solidariedade de minha família e amigos.

Sou o reflexo da esperança que nunca desisti de cultivar na estrada da vida.”

 

Silvia Aloia, consultora de projetos, formada em Administração em Sistemas e Serviços de Saúde pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e secretária nacional do MNCP

“Recebi meu diagnóstico em 1991 quando tinha 21 anos. Com o passar do tempo, fui aceitando que a sorologia não me define e vivo minha vida intensamente. Sou mulher, mãe, avó, esposa, filha, irmã, amiga, dedicando meu tempo á família, estudo e a militância.

O fato de ser mulher já pressupõe que haja uma sobrecarga e jornadas duplas e triplas de atividades, com o fator da sorologia, essa sobrecarga aumenta devido a dedicação e disciplina para manter uma saúde plena.

Costumo dizer que o ativismo é uma “cachaça”, pois as vezes faz bem, outras vezes mal, mas difícil parar, principalmente por acreditar que nós mulheres positivas necessitamos de políticas públicas que olhem para nossas especificidades no viver com HIV/aids, tanto biomédicas (olhar especifico do HIV e dos medicamentos em nossos corpos), quanto nas estruturais, que é termos acesso de qualidade aos serviços de saúde, de educação, de assistência, viver sem nenhum tipo de violência e discriminação e assim nos desenvolvermos com mais oportunidades e igualdade.

Apesar das grandes demandas, sou feliz e gosto de militar, adoro estudar, estar com amigos, de viajar, mas sobretudo, de chegar em casa e relaxar fazendo “aquela receitinha alquímica” regada a um bom vinho, acompanhada do meu marido, filha e neta, isso não tem preço. Desejo a todas as mulheres do mundo que vão em busca de seus sonhos, que não se calem e que estejam no lugar que quiserem estar. Feliz Dia da Mulher!”

Jaciara Pereira, funcionária pública e representante do MNCP na Região Nordeste

“Ser mulher vivendo com HIV/aids não é fácil, enfrentamos dificuldades desde o diagnóstico até a aceitação. Descobri que estava infectada no ano 2000 e decidi enfrentar essa situação de cabeça erguida, sempre me cuidando e estudando sobre a doença.

Com o passar do tempo comecei a ver que a maior dificuldade de viver com HIV/aids é o preconceito que enfrentamos diariamente. Mas nem ele me fez desistir da vida, afinal, eu tinha uma família e uma filha para criar.  Quero ressaltar que foi com o MNCP que descobrir a importância de uma política pública com igualdade para todas.

Hoje, as pessoas soropositivas também vivem retrocessos na política de aids com a falta de medicamentos, a lipodistrofia e o fechamento de algumas unidades de saúde que atendem as pessoas vivendo com HIV/aids. A luta é grande, mas acreditamos no SUS e sabemos que unidos faremos sempre a diferença.

A família cresceu, tenho dois netos e continuo lutando pela garantia dos direitos humanos e por um mundo melhor porque a esperança me fortalece. ”

Você também pode ler essa reportagem no Uol: ‘Sofro mais por ser mulher negra, do que por ter HIV’, diz artista plástica

Dica de entrevista

Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas

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Talita Martins ([email protected])

 

Fonte: Agência de Notícias da AIDS